segunda-feira, 10 de setembro de 2012

A RECEITA DOS BONS ALUNOS

A receita dos bons alunos
Para ir bem no Enem, não basta
estudar: o negócio é ler bastante
e prestar muita atenção nas aulas


Monica Weinberg
 
Alexandre Schneider
Victor Romero: curso de espanhol pela televisão e sonho de estudar na França

EXCLUSIVO ON-LINE
VEJA Educação
O paulista Victor Manuel Romero, de 19 anos, superou mais de 1,3 milhão de estudantes ao chegar em primeiro lugar no último Exame Nacional do Ensino Médio. O Enem é a prova aplicada pelo Ministério da Educação para medir o aproveitamento dos estudantes no fim do ciclo escolar. Romero acertou todas as 63 questões da prova e ainda cravou nota 100 no teste de redação. Seu caso chama atenção sobretudo pela diferença entre a sua história e a da maioria dos estudantes que costumam despontar no topo das listas desse tipo de concurso. Em geral, os campeões vêm de famílias de renda alta, têm pais com ensino superior e passaram pelas melhores escolas particulares do país. Com Romero não foi assim. Sua mãe, dona-de-casa, largou os estudos na 6ª série para trabalhar em uma fábrica de tecido. Seu pai, representante comercial em uma firma de sabão em pó, tem salário na faixa de 2 000 reais por mês. Conseguiu o diploma universitário tardiamente (formou-se em administração de empresas aos 45 anos) e a duras penas. Romero também não veio de escola particular. A família conseguiu bancar seus estudos até o ensino fundamental. Depois disso, precisou transferi-lo para a rede pública. O rapaz diz que, para fazer valer o esforço dos pais, sempre estudou "feito um louco". Ou seja: mais de três horas por dia, além do período em que estava na escola. No ano passado, ele cursava o ensino regular pela manhã e à tarde fazia um curso de técnico em mecânica. "Era uma precaução. Se meu pai precisasse, conseguiria arranjar emprego com mais facilidade", explica. Nas horas vagas, aprendia espanhol, língua dos avós paternos, por meio de um curso pela televisão.
VEJA ouviu 54 jovens que não erraram praticamente nenhuma questão do Enem (em uma escala de zero a 100, tiraram 98 na prova, contra a média geral de 52), na tentativa de saber o que os bons estudantes têm em comum. O cruzamento dos dados mostra que, diferentemente de Victor Romero, a maioria tem uma boa situação socioeconômica: 80% estudaram em escola particular e 70% têm pais com curso superior completo e renda acima de 2.600 reais por mês. Pesquisas já mostraram que jovens vindos de famílias cujos pais têm boa renda e formação escolar recebem mais combustível intelectual e têm acesso a uma vida cultural mais rica – fatores fundamentais para o bom desempenho escolar. Mas os trabalhos apontam também que uma combinação de esforço pessoal e investimento na educação é capaz de minimizar, ou mesmo de anular, a desvantagem da baixa renda. "O que faz a diferença mesmo é como a família prioriza o estudo", afirma Ryon Braga, especialista em educação. O campeão do Enem, por exemplo, diz ter tido no exemplo paterno sua principal fonte de estímulo. Antonio Romero, pai de Victor, decidiu voltar a estudar aos 38 anos e até hoje costuma raspar o salário para abastecer de livros a biblioteca da casa. "Ele sempre tratou os estudos como uma obsessão", diz o filho. Como Victor, cerca de 20% dos estudantes que obtiveram o melhor desempenho no Enem vieram de famílias de baixa renda (menos de dez salários mínimos) ou cresceram em lares em que os pais tinham pouca educação formal (concluíram, no máximo, o ensino médio).
Outro dado surpreendente revelado pela enquete de VEJA foi o tempo que a maioria dos entrevistados disse dedicar ao estudo fora da sala de aula: 31% afirmaram gastar, no máximo, uma hora por dia. Isso significa uma hora a menos do tempo que o típico aluno do ensino médio costuma gastar debruçado sobre as apostilas. A técnica declarada pelos alunos que tiveram um ótimo desempenho no Enem é simples: prestar atenção nas aulas e fazer em casa, sistematicamente, os exercícios pedidos pelos professores.
Os bons alunos, demonstrou ainda a enquete, também costumam ler mais do que a média. A maioria dos estudantes ouvidos contabilizou mais de dez livros por ano, descontando a bibliografia exigida pela escola. Segundo levantamento do MEC, apenas 20% do 1,3 milhão de jovens que prestaram o Enem declararam ter o hábito da leitura freqüente e 20% disseram nunca ter pego em um livro. Para se manterem informados, os melhores alunos preferem jornais e revistas à televisão, veículo que predomina na pesquisa do MEC.
O Enem – criado em 1998 para medir o nível de conhecimento com que os estudantes concluem o ensino médio – não é uma prova tradicional. Especialistas o classificam como um exame bastante complexo. As questões entrelaçam áreas de conhecimento e testam a capacidade do aluno de aplicar o saber teórico a situações práticas. Os estudantes precisam conhecer, por exemplo, as razões que explicam o fato de 99% dos casos de malária registrados pelo Ministério da Saúde ocorrerem na região amazônica. A resposta exige conhecimentos de biologia, geografia e cultura geral. "É uma prova inteligente, porque exige intensa habilidade de abstração da matéria dada em sala de aula", observa Paulo Renato Souza, ex-ministro da Educação. Atualmente, 20% das universidades dão aos alunos a possibilidade de acrescentar a nota do Enem ao resultado do vestibular. A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, por exemplo, reserva metade das suas vagas para os estudantes que tiraram nota acima de 70 no Enem. Nesse caso, os alunos não precisam passar pelo vestibular. Já na Universidade de São Paulo, o estudante pode acrescentar o resultado obtido no Enem à nota da prova da primeira fase do vestibular. A universidade atribui peso de 20% ao exame do MEC.
 
Paulo Liebert/AE
Alunos fazem a prova do MEC, em São Paulo: resultado ajuda no ingresso na universidade
A performance de Victor Romero no teste ajudou-o a conseguir uma das disputadas vagas na Faculdade de Engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, onde está matriculado desde o início deste ano. Quando não está estudando, o campeão do Enem namora, lê livros de Stephen King, toca canções do Paralamas do Sucesso ao violão, vai a danceterias e gosta de discutir com os amigos os rumos da guerra no Iraque. "Não sou nerd, mas tenho metas." A próxima, conta, é conseguir uma bolsa de estudos para fazer um curso de especialização na França.
O Enem tem como objetivo mapear a qualidade de ensino, mas também poderia servir para fisgar os talentos individuais, aqueles jovens que têm desempenho escolar acima do comum. Atualmente, eles ficam perdidos no meio das grandes estatísticas. Ao detectar os talentos, é possível monitorá-los e dar-lhes estímulo para que transformem seu potencial em conquistas concretas. Isso acontece nos Estados Unidos, país que tem como tradição valorizar o talento individual. Os americanos dispõem de diversos exames, desde as primeiras séries do ensino básico, que identificam os alunos de rara capacidade. Eles têm seu talento lapidado com a ajuda de bolsas de estudo e acompanhamento especial nas escolas e universidades. O Brasil já tem alguns exames para aferir a qualidade do ensino, mas nenhum deles dá o devido foco aos estudantes que demonstram habilidades especiais. O Enem deveria ser usado para esse fim. Com isso, o país ganharia um mecanismo para rastrear os melhores e dar-lhes o estímulo necessário para se tornarem capazes de gerar conhecimento acadêmico de primeira grandeza. É o que toda nação precisa para crescer.

O equívoco das cotas
O projeto de cotas que o governo enviou ao Congresso na semana passada, reservando a metade das vagas nas universidades federais para estudantes de escolas públicas, recebeu críticas quase unânimes de especialistas. Além de duvidar de sua eficiência, a maioria preocupa-se com a ameaça de que ele acabe por colocar em risco a qualidade do ensino superior. Projeção feita pela Universidade de São Paulo indica que, caso ela aplique a proposta do governo, três de cada dez jovens com nota suficiente para passar no vestibular ficarão de fora de seus bancos. Em seu lugar, conseguirão a vaga estudantes com notas quase 60% piores. "Significa que um aluno de alto nível estudará com outro que mal sabe calcular uma raiz quadrada", diz o professor Adilson Simonis, responsável pela pesquisa.
Hoje, 42% dos universitários vêm de escolas públicas. É um porcentual muito próximo dos 50% que o governo quer garantir com sua proposta. O problema é que apenas uma pequena parcela desses estudantes consegue aprovação nas carreiras mais disputadas, como medicina (15%) e direito (28%). É principalmente essa "desigualdade" que o governo quer reduzir por força de lei. A idéia não leva em conta, porém, que garantir o acesso do estudante da rede pública à universidade não significa assegurar sua permanência na sala de aula – muitas vezes comprometida pela impossibilidade de pagar custos de transporte, por exemplo. Nos Estados Unidos, onde a política de cotas para negros teve bom resultado, as universidades dispunham de recursos para auxiliar esses estudantes. No Brasil, o governo diz que pretende destinar bolsas aos futuros cotistas, mas ainda não sabe o número de estudantes que conseguirá beneficiar. Além disso, ao contrário dos Estados Unidos, aqui a qualidade do ensino nas escolas públicas é muito desigual. Se a idéia é nivelar as oportunidades, o governo teria então de criar cotas para estudantes de escolas públicas boas e outras para os de escolas públicas ruins. A verdade é que faria melhor se investisse no maior, e sempre adiado, desafio da educação: o de incrementar a qualidade do ensino na rede pública como um todo – essa, sim, uma maneira eficiente de facilitar o ingresso dos mais pobres na universidade.

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